As mulheres da minha vida
As mulheres da minha vida vestiram-se de negro
Procuraram conforto nos campos onde as oliveiras e os sobreiros brotavam
Como se traçassem um acordo de luz sobre as planícies ibéricas
Onde os caprinos saltitavam por entre pedras canchos e ribeiros
Sustentando os sonhos mantendo-os iluminados na sua mente e inteiros
O negro acalenta a morte dos filhos
Em tragédias encenadas nos caprichos dos deuses
Onde os soterramentos e envenenamentos espreitam sádicos
As crias jovens afoitas à tempestade e aos truques ratoeiras dos mágicos
O cajado em punho pela domadora de grunhidos
Equilibrista dançarina entre desertos barrancos
Amante das flores selvagens dos trigais concubinos
E das viçosas pastagens que escondiam misteriosos entroncamentos
As mulheres da minha vida silenciaram a violação o corte a cisão
A invasão das entranhas e defrontaram um mundo sem lei nem sustentação
Abafaram a magra comida a pobre refeição
Calaram a voz mas não alma
Porque a sinto em mim mesma até na noite mais calma
Cerraram os dentes perante a traição
Mas determinadas acenderam as lareiras mesmo sangrando do coração
As mulheres da minha vida amaram sem peias morreram solteiras
Encenaram um palco de risos e roseiras
E levaram consigo a paixão pela vida a admiração da estrela mais longínqua
E dançaram em delírios de entrega à vida e alegria
Contra palcos de sanfonas em sapateados de chinelos velhos estridentes
Perante a frieza cortante dos deuses indiferentes
As mulheres da minha vida ergueram pás deram serventia a pedreiros
Construíram muros e telhados
Derrubaram muralhas de pedra pavimentaram o chão mesmo em tempos malfadados
Acalento em mim todas as mulheres da minha vida
Quando abraço cada árvore do bosque e encosto o meu corpo
Aos menires de outrora nos lugares sagrados da terra
Quando nado nas águas calmas dos lagos e dos rios
Quando enalteço e amo os animais na cavalgada da existência
Quando a mente se acerca do corruptível com que nos embrulhamos
E os elementos naturais se transformam em bens essenciais
Ou em mantos negros com que nos transformamos em seres irreais
Guardo em mim a revolta que não pode nem deve silenciar o estuprar
Os atentados à vida feminina e as traições
A luta pela subsistência a infâmia dos políticos roubando o que é de todos
Ignorando e maltratando as famílias por ganâncias e corrupções
O meu corpo e espírito dançam cada vez que a vontade me puxa
Para a ondulação das águas dos abismos das fráguas
Até que o corpo capitule e se ausente deste mundo e morrer
Para noutros cenários laivos de mim possam renascer
Sinto colada a mim a liberdade de amar
Por entre o entusiasmo da construção de beirais onde as andorinhas edificam os ninhos
Apanho o voo delicado e estonteante dos flamingos para outras paragens outras geografias novas aragens
O meu coração plana até aos confins da galáxia para lá da lua amante
Do sistema solar salto abandonando os lamentos saudosistas e a intriga delirante
*
Escondida nas dobras
Esvoaço e num deslize capto o apaziguamento das libélulas
Fadas deste e doutro mundo
Manobram-me os pensamentos e fazem acontecer
Cintilações de amenidade em foles que sopram a brisa da serenidade
Pois quando julgo que o meu corpo caiu na fossa
Eis que energias entre dobragens me sustêm
Me provocam a flutuação sobre brisas
E fluem espaçadas e coloridas
Mesmo nas horas mais confusas e indecisas
A concertina afaga os sons das criaturas aladas
Que dançam sobre os rios e os lagos
E as minhas lágrimas de desespero unem-se à água corrente
Procurando buracos de acesso a novas margens
Outros espaços em expansão e delirantes paisagens
A tropelia aguarda porém para aplaudir quando cair por terra
Quer apanhar-me desprevenida quando a convivência
Se tornar enfadonha e austera para me cortar as pernas
Definhar-me os braços espetar-me as lanças afiadas
Rir-se na minha cara perante solas de sapatos desgastadas
A harmónica dobra-se pelas mãos do tocador
E eis que estranhas palavras se inventam
Outros tesouros se desfolham
E novas estradas se desmembram
Para outros rumos surgirem por entre linhas e curvas
Que se entrecruzam na gratidão plena
Do meu centro sentido vivido dado e partilhado do meu coração
Se pudesse eu caminhar pela montanha
Num carreiro estreito e brando imenso
Não quereria mais nada
Estaria em paz pois alcançaria o meu merecido descanso
*
Covardia
O medo carcomido bloqueou a língua das criaturas veneradoras
De ícones e teatralidades existenciais
Enquanto os bichos da madeira abrem currais
Para outros invertebrados que prostituem manjedouras
O medo contaminou os cérebros dos meigos
Dos introvertidos dos dedicados dos extrovertidos dos leigos
Lança a sua garra afiada traidora de mãos e bocas
Rodopia contente e inebriante entre muros sonoros
Finge o mono desgraçado que não existe
E esconde-se por entre as dobras dos corpos
No meio dos sulcos das roupas coladas à intimidade nervosa dos suores
Debaixo dos sapatos e dos chinelos de andar por casa
Fazendo sentir aos pares de olhos que proliferam sobre as cadeiras instáveis
Como passarinhos remelosos asfixiando na gaiola
Onde por maleita e obstrução à inteligência caiu de paralisia a asa
O medo riu-se das beldades maltratadas pelo mundo
Entrançado pelas patologias desencontradas
Sobre a mesa redonda do livre-arbítrio
Onde escorre a ambiguidade das estratégias
A superficialidade sem pesquisa das manobras
O aplauso ao passatempo corrido atrás dos tapumes
Da oralidade viciada da retórica deslavada
Das mãos gretadas gargantas bloqueadas
Dos ouvidos entupidos membros doridos
Pontapeando a artrite pestilenta escoando as lágrimas dos beirais
Extravasando as emoções do grito mudo das hérnias discais
E o inverno que se instala no branco gelado dos corações
Onde a alegria renunciou ao riso
O abraço refugiou-se no buraco mais fundo de cansaço
Mas quem sabe a dança das bruxas na profunda floresta
Sobrevive ao desfecho trágico
Desabotoando os mantos em luzidio desenlaço
*
Vagabundear
Os encasacados pedestres apalpam o piso da passeata soalheira
Aguardando a cópula do sol sobre o horizonte
Enquanto os fetos humanos pressentem para lá da cortina vermelha
O conflito a violência o amor vendido a bandalheira
Transita por entre o frio da tarde de inverno a cinematografia dos abraços
As lágrimas correndo inundando a maquilhagem das faces
Que amachucadas experimentaram dolorosos desenlaces
Pantomineiros repuxam para a tela os gestos envaidecidos
Pela pintura exagerada do arlequim transfigurado
Na surpresa bailarina embasbacada pelos patéticos sorrisos
E na inversão da imagem saltitam os reflexos provocadores
Perante a personagem desprezada solitária e mal-amada contempladora do céu
Denunciando posses transitórias na profundidade dos espelhos percursores
Ante a nudez calorosa do equilibrista
O ciclista pedala na corrente curvilínea da explorada e perversa pista
E por entre o ritmo do vem e vai
Eis que num gesto desinteressado a criança resmunga
Num gesticular de revolta recusa o fascínio pela tecnologia engana tolos
E vira costas ansiando pela dança bordando com os pés o chão
Gritando um histérico não ao pedido de tirar uma foto com o respetivo pai
O enrolamento das ondas anuncia a revolta interior
Contra as plataformas movediças cheias roliças
Da engenharia informática angariadora de escravos felizes tal é a sedação
Enquanto o surfista corta as malhas da rede
Manobra os sonhos negros medonhos em fantasia malfadada
Com malabarismos de navegador ao sabor dos vórtices
Desprendendo-se a salsada patológica no traçado psicótico
Em choques elétricos agitando os neurónios descontrolados da espécie castrada
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Ana Maria Rodrigues Oliveira nasceu em 17 de fevereiro de 1960, em Portugal, no Alto Alentejo, no distrito de Portalegre e concelho de Castelo de Vide. Em 1986 finalizou a licenciatura em Filosofia, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Licenciatura que lhe permitiu lecionar filosofia durante alguns anos. Edita o seu primeiro livro de poesia, Grito de liberdade, em 2008 através da Corpos Editora. Dedica a obra a todas as mulheres, pela luta e determinação com que enfrentam as adversidades de uma sociedade que ainda manipula e escraviza. Ainda no mesmo ano participa de duas coletâneas: A arte pela escrita (prosa), da editora Escritartes e Poemas sem fronteiras “Ora vejamos…2008”, Editora LULU de Leiria que faz uma recolha impressionante da poesia contemporânea. Nesta última, a autora obtém o prêmio da Menção honrosa com o seu poema “Farsa”. Lança Espírito Guerreiro (edição do autor), seu segundo livro de poesia, em 2014. Participa de um projeto ligado a filosofia para crianças. Apresenta os seus trabalhos, entre eles algumas resenhas, em várias revistas de literatura e poesia. Mantém alguns sites em que divulga a sua escrita: abismo verbal, devir quântico, contar com sentido etc.
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