Conto do livro Flor de Gume (2020, Jandaíra)
Ainda tem amargura embolada nos meus cabelos. Minha mãe cata todas, cata como os piolhos da primeira infância. A carne fede da queimadura, me roeram o osso, tentaram roubar minhas vontades, me implantaram outras que demorei para vomitar. Saí nas ruas bebendo como uma Padilha amaldiçoada pelas bocas que não sabem a dor do sangue. Baforei meus ódios. Com medo e comendo o pão da porrada, do autoflagelo. Vi o sangue que brota das pernas, escondi como se fosse crime ser eu. Esconde o sangue e se esconde junto.
Tentei ser a merda de um homem, mas sou mulher, e morri tantas vezes, mas voltei metralhadora, estilingue, faca. Porra, sabe como é, eu voltei para desgraçar o nome do meu pai. E não me culpo mais por dizer que queria olhar para o morto e cuspir na testa dele, porque tenho muito respeito com as minhas raivas e eu preciso assumir que estou com um puta ódio, e ele me faz seguir, pegar o ônibus e batalhar todo dia em uma cidade longe pra caramba de casa. Faz tempo que eu estou longe do interior, da mãe, de tudo. Sou uma raiz sem pote. Eu fico aqui me matando para achar uma aceitação, um perdão, mas eu não preciso perdoar.
Já não cabem mais as paradas, os silêncios antes de martelar os dedos no teclado que uso para me comunicar. A sede é de queimar, fazer fogueira de tudo, rir, dançar, pirar na porra da piromania de ver tudo sabrecar, tudo que já não tem força de me derrubar de novo. Não tenho essência, essência feminina é um linguajar tosco e raso para a bomba atômica dos meus músculos. Decreto para ontem que já não sou aquela garota sentindo a mão pesada dos espancamentos, já não sou a mulher estuprada pelo companheiro de merda, não tento esconder o meu sangue.
Agora observe o sangue que desce grosso, aguenta o cheiro da minha verdade, nojenta dizem de mim. Nojo tenho é da cara de quem não tem a cara de encarar a podridão no canudinho que por trinta anos engoli. Só bebe comigo do meu litrão quem me ama e me faz gozar, e gozar é prioridade. Nunca fui frígida, o que faltou foi língua. Muitas vezes, só quem teve língua fui eu. O que faltou foi entrega. E que tristeza, me entreguei para cada par horrendo de alma que dá vergonha. Minha buceta chorou tanto por quem não chorou comigo por nada e em nada.
É isso. Cheguei na encruzilhada, e não é indecisão, é benção. A rua me deu o ensinamento. Disseram fecha a perna, não responde. Fechei, não respondi. Nada adiantou. Abro as pernas para a força que me guia, e quero parir novos dias, mulher dividida em duas, nasci de novo, dessa vez fui eu que me pari.
Hoje é o dia que a fogueira está acesa, descontrolada, se espalhando pelo milharal, e todas as dores vão queimar junto com essa tatuagem feia no braço que diz: pai. Não tem encarceramento que te faça pagar. A amargura me fez mais, mas ninguém merece ser mais atravessando o inferno.
Quero ser mais com outros percursos, com menos dor. Acredito em mim, acredito nas mulheres, pobres, fodidas, trans, travestis, pretas, indígenas, sobreviventes, ribeirinhas. Acredito na minha mãe, tias, avós, amigas. Acredito nessa maldição que eu sou, que linda maldição! Só quem permanece em mim vai dançar na lua que se aproxima. Quem queimou tudo, a si mesma, mesmo sendo queimada e cuspiu o fogo nos carros pratas do sinal, volta. Sempre volta.
_ Monique Malcher é escritora e artista plástica nascida em Santarém, interior do Pará, mas viveu grande parte da vida em Belém (1988). Flor de Gume (2020) é seu livro de estreia pela Editora Jandaíra, com edição de Jarid Arraes, mas a escritora é conhecida pelas publicações independentes de zines e uma newsletter semanal. É mestre em antropologia (UFPA) e doutoranda interdisciplinar em ciências humanas (UFSC), com pesquisa voltada para literatura e quadrinhos produzidos por mulheres. Atualmente é curadora do projeto Trama das Águas, coletânea que será publicada pela Monomito Editorial, que reunirá mais de 50 escritoras paraenses. Acredita que a literatura é um dos caminhos possíveis para aguentar o caos e matar a saudade do que ainda não veio.
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