Como se fôssemos espelhos
, tenho tanta coisa pra te contar! Escuta, preciso te falar: preciso não, quero, quero muito te contar! Contar da vez em que pulei no meio do rio sem saber nadar. E do medo de morrer que senti. Contar da vez em que viajei de avião – voo internacional – completamente chapada. E de como ouvi dois chineses conversando e vi as portas da minha percepção se abrindo, de par em par. Da vez em que estive em Lisboa e fiquei sem dinheiro no Ano Novo. E de como achei que ia ter que dormir nas ruas da capital portuguesa. Da capela feita de ossos que encontrei; das igrejas velhas e dos castelos que já visitei. De quando tinha dezoito anos e cortei todo o cabelo em casa, numa crise, com uma tesoura escolar. Das várias vezes em que pulei a janela da casa da minha melhor amiga. De como uma vez caí e fiquei com um roxo horrível no braço e de como nós duas brigamos. Da única vez em toda a vida em que desmaiei. E de como bati a cabeça no chão. De todas as vezes em que achei que ia sufocar de tanto amor. De todas as vezes em que eu amei. Da minha primeira vez; do primeiro beijo com ela. Dos meus pesadelos de todas as noites, que se repetem; do meu inglês péssimo e do meu francês básico. Vamos conversar em francês? O teu francês que, com certeza, é bem melhor do que o meu. Quero te contar também da minha infância, de todas as coisas que não entendia; de todas as vezes em que planejei fugas de casa. Da vez em que quebrei, sem querer, os dentes do meu irmão. E de como me assustou vê-lo chorar tanto. Te contar das crises existenciais; de como me olho no espelho às vezes e não me reconheço. E acho que sou outra pessoa. E acho que seria melhor se eu fosse outra pessoa. E acho que, com certeza, ela me amaria, se de fato eu fosse outra pessoa. (Mas eu ainda quero esse amor?) Preciso te falar de como faço crescer as plantas e de como gosto do café das manhãs. E mil outras coisas, se você tiver paciência. E quiser me escutar. E eu escutar a ti. E as tuas histórias que se parecem com as minhas histórias. E nós duas, que nos parecemos uma com a outra. E com a noite. Como se fôssemos espelhos. Você gosta da noite? Eu amo. Vou começar te contando isso, olha. Presta atenção:
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Peixes
tudo no corpo dela pingava caía ou inundava água os olhos marejados a boca escorrendo saliva os poros transbordantes de suor os joelhos ralados com pequenas gotas de sangue e o sexo sim o sexo também que pulsava inchado a ponto de estourar tudo na casa dela pingava gotejava a torneira do banheiro o chuveiro mesmo depois de desligado a pia da cozinha a goteira no teto da lavanderia o orvalho das plantas a calha entupida as águas correndo por dentro das paredes no encanamento as chuvas de verão molhando as telhas o peixe dourado e solitário se movendo sem espaço dentro do aquário tudo na cabeça dela pingava escorria a sanidade aos poucos indo embora pelo ralo a angústia que ameaçava inundá-la a ansiedade que afogava os problemas sem solução ela era feita inteira de partes de lagos de rios mares marés oceanos ela guardava tanto líquido dentro de si que alagava sozinha e então não sabia se se oferecia a um estranho e depois a mais outro estranho buscando alguém que pudesse agarrá-la com força e a represasse como se faz com a água que escapa por entre os dedos
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Daniela Rezende é escritora e artista educadora. Graduada em História da Arte e Mestra em Letras, nasceu e mora em São Paulo, SP. Publicou textos em revistas virtuais como RevistaRia, Subversa, Desvario, Mallarmargens, Toró, Alcateia, Ruído Manifesto e Torquato, e nas zines Despacho e Felisberta. Teve um videopoema selecionado no 4° Concurso de Videopoesia da Desvairada – Feira de Poesia de São Paulo (2020). Atualmente, colabora no portal Fazia Poesia, no Medium, e participa do CLIPE Poesia, curso oferecido pela Casa das Rosas. Há alguns anos, só lê mulheres.
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