tela de proteção
na quarentena somos janelas que, antes nunca abertas, agora se tornam farol.
olho, através da tela de proteção, para a vizinha no outro lado da rua. parece uma mulher comum, de meia idade. fuma um cigarro, olhando a fumaça subir para o céu. ela também me vê e faz um aceno breve, como se dissesse, se não fosse essa situação, talvez nunca esse aceno.
me pergunto se as telas de proteção que envolvem nossas janelas evitam o pulo dos gatos ou o nosso.
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balões cor-de-rosa
essa semana saí pra ir ao médico na segunda. precisava de remédios. voltei morrendo de culpa e pensando. está tudo sujo de vírus. deixei sapato na porta, tirei a roupa e coloquei na máquina, desinfetei carteira, celular e bolsa. lavei a máscara de tecido, joguei as luvas cirúrgicas no lixo, tomei banho lavando o cabelo e o corpo com sabonete antibacteriano que comprei na farmácia no início de tudo isso.
no instagram vi uma postagem que dizia: "se você pudesse ver o vírus, você sairia?" na foto, uma rua calma cheia de árvores, como aquelas de ipanema ou nova iorque, e o vírus flutuando cor-de-rosa por toda parte como balões em festa de criança. a imagem não sai da minha cabeça. num estalo, entendi aquele filme birdbox e queria ser a sandra bullock que nunca tirou a venda e não perdia a esperança de que um dia as coisas iriam melhorar mesmo que o final fosse numa escola de cegos. acho que estou confundindo o livro com o filme, mas não importa.
o que importa, de fato, é que existem esferas cor-de-rosa-invisíveis flutuando por aí e muita gente escolheu pôr uma venda nos olhos e sair nas ruas pra encontrar amigos, pra beber, pra fazer compras como se estivesse na disneylândia, e eu estou desesperada com minhas mãos ressecadas de tanto usar álcool 70, e não há hidratante que chegue. tem vírus na mesa, nos livros, no computador e eu limpo-esfrego-enxugo. haja água sanitária e sabão, muito sabão. e minha vontade é sair na rua gritando: "vocês não estão vendo os balões-cor-de-rosa-pelo-amor-de-deus-fiquem-em-casa!", mas eu seria vista como louca em um mundo de cegos.
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rotina
abro os olhos, levanto, escovo os dentes, preparo o café, vejo se há algum e-mail que mereça minha atenção. leio todos com desânimo. nada mudou na minha rotina. quero dizer, quase nada. antes saía pra ir ao mercado, hoje nem isso. god bless the internet.
faço alongamentos no tapetinho que comprei quando me animei, certa vez, a fazer yoga. respiro. tento meditar com as pedras dos chakras: cristal, sodalita, cianita, amazonita, olho-de-tigre, jaspe-madeira e obsidiana. nessa ordem.
levanto, preparo o almoço. macarrão, de novo. eu sei que devia me alimentar melhor. uma taça de vinho branco. todos estamos sumindo, mas continuamos no piloto automático. fazendo coisas por puro desinteresse em desistir.
leio um pouco do livro que fala sobre um pássaro morto. mais uma taça de vinho. até a hora de dormir consigo esvaziar, ao menos, uma garrafa. deito já um pouco embriagada, antes de sonhar com nada.
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Dia Nobre, nascida em Juazeiro do Norte, cariri cearense, é historiadora, escritora e poeta. Tem dois livros publicados na área da pesquisa histórica, O teatro de Deus (2011) e o premiado Incêndios da alma (2016). Atualmente vive em Petrolina (PE), onde trabalha como professora universitária desenvolvendo projetos ligados à literatura, história e feminismo. Todos os meus humores, sua obra de poesia, é lançada em 2020 pela Editora Penalux.
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