Transcrição da matéria publicada no Diário de Pernambuco, no caderno Viver Domingo, no dia 29 de junho de 1978
Texto: Tereza Lúcia Halliday Foto: Diógenes Montenegro
Maria de Lourdes ganhou o primeiro prêmio do Salão Nacional de Poesia, realizado em Minas Gerais
O primeiro prêmio do II Salão Nacional de Poesia, realizado este mês em Juiz de Fora, Minas Gerais, foi conferido a Maria de Lourdes Hortas, poeta portuguesa, miudinha e lírica, residente do Recife, onde teve toda a parte brasileira de sua formação. Seu feito: haver construído um poema com um fio de lã.
Concorrendo sob o pseudônimo "Flor do Verde Pinho", Maria de Lourdes enviou dois poemas inéditos: "Terço da Aldeia" e "Fio de Lã". Este último lhe valeu o Troféu Portugal da Associação de Cultura Luso-Brasileira, promotora do Salão. O regulamento do concurso exigiu que os trabalhos fossem expostos em molduras, com ilustrações. Ilustrado com um fio de lã, o poema vencedor apresenta a tessitura forte no texto, que lhe valeu o primeiro lugar entre mais de 200 concorrentes:
Quando no Tejo embarquei tinha um xailinho pra frio que os mares de sete dias desmancharam em novelo. Aqui achei outro rio e de Bandeira roubei o primeiro "alumbramento". Desbotaram os rosados de minha face européia: amorenei inteirinha De menina, virei moça. Troquei o falar castiço por sotaque tropical, arrastado e mestiço
Ponte transoceânica entre as raízes lusitanas da autora e o seu crescimento pessoal no Brasil, o poema tem a tônica nos pilares plantados no além-mar e dentro de si mesma:
(Se esqueci das amoras? Das quintas e das latadas, das fontes, grilos, giestas, primaveras e outonos?) Passei a colher pitombas, jambos, mangas, carambolas, e me entreguei à passagem, às praias, coqueiros, pontes. Mas a ponta inicial daquele fio de lã (azul e quente da infância) ficou por certo amarrada do outro lado. Fixa por limos do tempo ainda existe, raiz, e insiste em meu canto.
As dificuldades de aculturação e a indestrutibilidade das raízes revestem o fio de lã do mais alto significado emocional e poético:
Só isso não consegui
ao passar o Equador,
de minha alma guitarra
fazer um clarim-mental.
Insisto, a culpa é da lã,
Aquele fio azulado,
que reteve o meu cantar
longe, longe
do outro lado.
Por ele caminham ondas de atavismo irrecusável (lírica voz portuguesa). E em minhas cantigas – todas – por mais que busque alegria choro fado com certeza.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Maria de Lourdes Hortas deixou os volumes das leis para pôr em prática suas intenções, já esboçadas aos 16 anos de idade. O que eu quero/ realmente/ é pôr à tona/ a alma do mundo/ translúcida como fonte. Mas logo descobriria que a alma deste mundo velho de guerras não é tão translúcida assim. É preciso, às vezes, quebras relógios/ rasgar calendários/ ter como guias, somente sóis e luas, o que, a muito poucos é permitido fazer.
Quando voltou a Portugal para realizar pesquisas literárias, Maria de Lourdes Hortas ganhou seu primeiro prêmio, no concurso de manuscritos "Poesia por autores inéditos". Teve, então publicado seu primeiro livro – Aromas da Infância (1965). Mais de dez anos depois, no Recife, obtém a licenciatura em Letras e passa a ensinar Literatura. Continua, porém, romeira de rimas e metáforas: Aqui é planície/ e eu busco a montanha./ Aqui é a noite/ e eu aguardo o dia.
O refúgio na palavra escrita
Lourdinha acha que recorreu primeiro a palavra escrita por causa de sua dificuldade de comunicação oral com o mundo. Quando foi solicitada a ler seu poema vencedor, na cerimônia de entrega do troféu, o fez de tal maneira (agravada pela emoção do momento), que ouviu o seguinte comentário, de um membro da platéia: "Poesia dez, declamação zero".
Nas poucas vezes em que não apontou versos como respostas às minhas perguntas, Maria de Lourdes se expressou, rapidamente, em prosa, sobre a condição e o jeito de ser poeta:
– É preciso que o poeta não se dedique à abstrações literárias, mas viva entre as pessoas. É preciso que participe...
– Inclusive politicamente?
– Sim. Inclusive a participação política. Mas esta depende do temperamento de cada um.
Leitora assídua de Cecília Meireles e Fernando Pessoa, Lourdinha só consegue escrever quando há paz interior e silêncio no exterior.
Na sua "carteira de identidade", abertura do livro Aromas da Infância, a poeta se descreve:
Nome: Maria./ Idade: Dois tempos: de valsa e sonata./ Estado civil: noiva à beira mar/ esperando a volta do que naufragou/ Profissão: Poesia./ Cor: Melancolia.
Esta carteira está sendo reformulada em novos dados vivenciais e um novo perfil surge em seu segundo livro (inédito) – Canto da Segunda Hora. Nele, a busca do lirismo continua, alforje de solidão a tiracolo e a consciência do fugaz e do constante: Neste global supermercado/ seria possível comprar/ mesmo enlatado/ um pouco de lirismo/ em liquidação?. Caso seja possível, ela fornece a lista de compras, onde inclui "pássaros pra telhado", "rosas pra sargetas", "fontes pra pedestres", "serenatas e perfumes para as amadas". E, no dilema do poeta que vive inserido em um contexto mundial de antilirismo e de prioridades que deixam a poesia em humilde classificação, Maria de Lourdes mantém o seu apelo: Terra, minha velha,/ despe o tédio/ mergulha um pouco em teus raros lagos de silêncio/ e veste Amor – o eterno prisma do novo olhar.
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Maria de Lourdes Hortas nasceu em Portugal e aos dez anos veio para o Recife (PE), Brasil. Poeta e ficcionista premiada, participou de várias coletâneas. É ativista literária: fez parte da coordenação das Edições Pirata; organizou a antologia Palavra de mulher (1979); durante vinte anos, foi Diretora Cultural do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, onde editou a revista "Encontro". Além disso, também atua nas artes plásticas. Romaria, sua coletânea poética, está em pré-venda, com 15% de desconto, na loja da Macabéa Edições.
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