Marlene baba na almofada puída do três meia três. O ônibus tropeça, ainda estamos na passarela dezoito. Marlene baba com os ombros caídos e a cabeça quicando na quina da janela. Quero acordá-la, mas ela dorme com tanta convicção que cada barulho é um crime. O cabelo desgrenhado, os lábios compridos e grossos, a barriga saindo da blusa que um dia coubera em seu corpo. É preta a Marlene. Grande, cabe em dois bancos, me aperto para sentar em dias de sol ao lado dela. Marlene sorri como se o divórcio tivesse sido ontem. Ela nunca me vê, eu sempre a vejo.
Entre o reflexo da janela de um Chevette, vejo a poeira espanada pelo vento que gruda em meu rosto. Os carros empilhados, esmagados por caminhões e ônibus. Do lado de Marlene não há perigo. É dia de solidão. Nós duas caminhando por quilômetros, desbravando engarrafamentos, compartilhando do mesmo ar.
Descemos a passarela vinte e três, vou à frente, observo de soslaio seus passos lentos atrás de mim. Em Irajá são seis e trinta e duas da noite, digo a ela quando por um susto percebo que Marlene estava ao meu lado me perguntando a hora. Primeiras palavras trocadas. Comovida digo algo sobre o tempo. O calor dos dias nesse asfalto bruto e machucado, o vapor de um capô aberto no meio-fio em frente ao Gilson Pneus. Ela caminha ao meu lado. Não diz nada. Digo muito, percebo que ela balança a cabeça confirmando algo que não era para ser confirmado, mas sim respondido. Quero dizê-la que compreendo os seus dias, mas não digo. Percebo que é preciso caminhar em silêncio ao seu lado. Em frente a um prédio azul, ela para. Os olhos castanhos me encaram, os lábios dizem "Obrigada".
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Valeska Torres nasceu no Rio de Janeiro, em 1996. Cursa bacharelado em biblioteconomia na Unirio e publicou seu primeiro livro, O coice da égua, em 2019, pela 7Letras. "Marlene" ganhou o prêmio V Concurso Literário Arnaldo Niskier.
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