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Míriam Martinho: "a palavra escrita era a diferença entre existir e não existir" – entrevista


© Macabéa Edições

Míriam Martinho, formada em Letras (USP) e Tradução (Associação Alumni), é pioneira do ativismo lesbiano no Brasil. Ao lado de Rosely Roth, foi fundadora do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) e uma das lideranças da ocupação do Ferro's Bar, em 1983, conhecida como o Stonewall brasileiro, que reivindicava aquele espaço como de articulação e socialização lésbica. Na época, criticava duramente partidos progressistas por encararem determinadas pautas – como as demandas das mulheres e das populações negra e LGBT – como acessórias, deixando esses debates para "depois da revolução".


Ao longo de sua trajetória, Míriam apropriou-se, através da edição e da publicação de jornais e revistas lesbocentrados, da palavra escrita como ferramenta aliada à militância pela causa lésbica. Idealizou o boletim ChanacomChana, rebatizado, após doze edições, de Um Outro Olhar e veiculado, desde o encerramento do GALF, como revista impressa até 2004, quando passou a ser virtual. Além dessa revista voltada para pautas lesbianas, Míriam hoje mantém a página Contra o Coro dos Contentes, que prioriza o protagonismo feminino na cultura e nas artes.


Reprodução: ChanacomChana, n. 2

Presença assídua na seção de poesia do então ChanacomChana, é possível perceber, em sua produção autoral, o tom de erotismo lesbiano intrínseco ao discurso de resistência e resgate do próprio espaço nos âmbitos público e privado. Essa característica pode ser lida no poema "Crime perfeito", por exemplo, sobretudo nos versos "O corpo a gente esconde debaixo dos olhos do mundo,/O álibi, sendo nós, é um crime perfeito". Mesmo com a forte influência do discurso ativista, tais aspectos, na poesia de Míriam, não são construídos de forma panfletária e, por isso, não se confundem com seus textos destinados explicitamente à militância.


Macabéa Edições – Considerando o contexto da época, e a criação do GALF, como se deu, na sua percepção, o processo de construção de um movimento lésbico organizado no Brasil?


Míriam Martinho – Partiu da necessidade de construir locais, fora dos espaços comerciais destinados às lésbicas, onde pudéssemos refletir sobre os porquês do preconceito e da discriminação que sofríamos e, também, para a troca de vivências, socialização e apoio mútuos.


Reprodução: ChanacomChana, n. 4

ME – Dentro de uma estrutura heteropatriarcal, qual é a importância e quais são os desafios de se apropriar de veículos de registro como publicações lesbocentradas?


MM – Quando iniciei minha militância, a palavra escrita era simplesmente a diferença entre existir e não existir, já que não dispúnhamos de outros meios de comunicação acessíveis a cidadãs comuns. Entretanto, mesmo hoje, em que há inúmeras formas de comunicação audiovisual disponíveis, a palavra escrita, no meu entender, permanece com peso considerável. Para nós, lésbicas, a apropriação da palavra escrita é fundamental para o processo de combate à invisibilidade que marca a nossa existência a ferro e fogo, como meio de comunicação com as lésbicas de hoje e como registro de nossa existência para as lésbicas do futuro.


ME – Como surgiu o boletim ChanacomChana? E quem eram as colaboradoras?


MM – O boletim ChanacomChana teve uma versão tabloide, número zero, lançada em fevereiro de 1981, ainda no período do Grupo Lésbico-Feminista, anterior ao GALF. Depois, não conseguimos mais recursos para publicar o título como tabloide. Em dezembro de 82, já no GALF, decidimos retomar o título ChanacomChana com mais ou menos o mesmo objetivo do jornalzinho: ser veículo de comunicação das ideias do grupo e com outras lésbicas. Nos primeiros dois anos do ChanacomChana, as matérias eram produção do próprio grupo. Juntávamos o que cada uma tinha produzido no período. Depois que a Rosely apareceu no programa da Hebe Camargo, em 1985, e conseguiu informar a caixa postal do grupo no ar, passamos a receber muitas cartas e contribuições de textos de todo o país. Então, o Chana passou a ter outras colaboradoras que não só suas produtoras.


Reprodução: ChanacomChana, n. 9

ME – Nos seus poemas, podemos identificar a urgência de amar sua semelhante sem sofrer represálias por isso, embora sua criação literária se apartasse da panfletária. Como se dava esse processo? Você ainda faz poesia?


MM – A chamada arte engajada pode ser pobre esteticamente, perdendo qualidade ao se prestar a veículo de panfletarismo. Fazer arte de forma engajada exige muita honestidade intelectual e criatividade artística. Eu escrevi poesia, por um bom tempo, como uma expressão muito pessoal das minhas vivências. Acho que o meu processo de escrita nessa área sofreu a influência de outros poetas, da minha formação em música, mas, sobretudo, de inspiração mesmo mais do que de expiração, de um trabalho árduo sobre o poema. Primeiro brotava na minha cabeça, a partir da minha sensibilidade, e depois era trabalhado esteticamente. Infelizmente, faz tempo que não escrevo.


ME Além de dar continuidade à revista virtual Um Outro Olhar, você mantém a página Contra o Coro dos Contentes. Como tem sido essa experiência?


MM – Então, a Contra o Coro dos Contentes surgiu da minha necessidade de escrever sobre assuntos outros que me interessavam, fora política e militância. Eu precisava voltar a escrever sobre artes em geral, falar de tópicos mais pessoais, temas que não cabiam na Um Outro Olhar. Mas, como o hábito faz a monja, nos últimos anos resolvi retomar o tema do protagonismo das mulheres, em todas as áreas, porque sinto que estamos vivendo um momento de grande regressão de nossos direitos tão arduamente conquistados. No caso da Um Outro Olhar, eu a mantive a princípio com a mesma temática da revista impressa, sobre direitos de gays e lésbicas. Hoje, é quase estritamente voltada à questão lésbica (embora ainda traga informes sobre direitos homossexuais em geral), pela mesma razão que me fez focar no protagonismo das mulheres: a invisibilização das mulheres em geral e das lésbicas em particular. Também é um local de resgaste da história da organização lésbica no Brasil. Mesmo não sendo possível garantir a assiduidade de publicações de que gostaria, manter as páginas ainda me parece importante.


Integrantes do GALF em sua sede, 1983 – acervo Um Outro Olhar

ME – Hoje, é cada vez mais comum vermos integrantes de grupos ditos minoritários pleiteando e até mesmo ocupando cargos e posições de poder dentro do sistema político-partidário, eventualmente alcançando conquistas importantes. Como você percebe atualmente esse ativismo dentro de partidos?


MM – Como a maior parte do ativismo da década de 80, eu e Rosely éramos bastante críticas das tentativas de cooptação dos movimentos sociais pelos ditos partidos progressistas. Pregávamos a autonomia desses movimentos em relação a esses partidos, o que não queria dizer não ter comunicação com eles. E o tempo tratou de nos dar razão. Hoje, você vai ver quem organiza, por exemplo, as marchas do dia 8 de março, e só encontra gente de partido, com as chamadas organizações independentes quase sem voz e sem vez na construção das manifestações. Você vai a uma manifestação específica e tem mais bandeiras de partidos com suas reivindicações do que as dos movimentos e suas pautas. Principalmente na primeira década do MHB [Movimento Homossexual Brasileiro], os grupos da esquerda tradicional consideravam os movimentos sociais, como o feminista, negro, homossexual, ambientalista, como luta menor, divisionista. Posteriormente, passaram ao processo já citado de cooptação e aparelhamento desses movimentos e de secundarização de suas pautas.


Reprodução: ChanacomChana, n. 5

ME – Muito se fala sobre a crescente desmobilização de setores que são os mais prejudicados pela necropolítica vigente no país. Priorizando as causas das mulheres e das lésbicas, qual é a sua percepção sobre os movimentos independentes atuais?


MM – Então, acho que estamos vivendo um grande backlash nos direitos das mulheres e das lésbicas em especial, vindo não só da extrema-direita ultrarreacionária como da esquerda pós-moderna, identitarista. Muitos espaços lésbicos sendo fechados em todo o mundo, lésbicas sendo expulsas até de caminhadas lésbicas por dizerem que lésbicas são mulheres que se relacionam estritamente com pessoas do sexo feminino, estigmatização de correntes do feminismo, perda até do público-alvo dos movimentos feminista e LG [lésbico e gay], a saber as mulheres e os homossexuais, hoje transformados numa espécie de casa da mãe Joana política onde entram todos os reais e supostos discriminados do mundo. Enfim, uma zona. Por outro lado, percebo que, em nosso país, apesar desses pesares, as lésbicas continuam resistindo às velhas e novas formas de invisibilização, produzindo revistas, páginas na internet, vídeos, pesquisas acadêmicas etc. E nós somos escoladas em resistir, não é mesmo?


ME – Como militante, tendo experimentado diversas conjunturas políticas e sociais ao longo de períodos igualmente diversos, qual questão te parece mais urgente de se pensar, no Brasil de hoje, quando falamos em existência lésbica?


MM – Resistir à ressignificação da nossa identidade por agentes estranhos ao nosso meio e continuar garantindo nossa visibilidade e os espaços que já conquistamos.

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