Hoje, faz um ano que encontrei Ofélia morta na cadeira de balanço.
Doze meses que, quase semanalmente, relembro o momento que ri de lado levantando uma sobrancelha ao achar curiosa a maneira que os felinos dormem e fui ajeitar seu pescoço e percebi que algo estava muito errado.
Era domingo, fim de tarde, quase a hora da missa. No meio da sala me vi com um corpinho felino de onze meses ainda quente em mãos.
E agora que parei para pensar em meses, percebi que ela passou mais tempo morta do que viva e que isso não faz a menor diferença pra quem lembra, porque a memória não funciona dessa forma.
Ofélia amava brincar com nossos pés quando lavávamos a louça. E com a vassoura quando varríamos a sala. E ficava animadíssima quando eu ia passar roupa, pois os movimentos das mãos e o fio do ferro que balançava eram terreno fértil para suas patinhas ligeiras.
Enquanto sua irmã preferia dormir aos meus pés e sem encostar demais, Ofélia tentava entrar em minha pele porque perto nunca era o suficiente. Ela ainda tinha aquela mania de gato que desmamou cedo, o que, cá entre nós, era bastante irritante.
Uma vez, Ofélia subiu na pia e pegou o perfex, que por uma semana se tornou seu melhor amigo, me lembrando o Linus, do Charlie Brown, arrastando seu cobertor de estimação. Outra vez, ela conseguiu roubar a casca da melancia e saboreou até não aguentar mais. Ofélia gostava de abrir o lixo, que a entregava com o mesmo barulho de sempre, permitindo que escutássemos cada um de seus assaltos.
Ela gostava de subir na máquina de lavar e observava Sofia pulando sempre tão mais alto que ela. O que Sofia aprendeu com dois meses, Ofélia só aprendeu com três. E era assim, sempre com uma distância de um mês de sua irmã.
Ofélia não miava. Chegou a fazer uns gemidos baixinhos, mas não era de falar muito. Sua comunicação eram os olhos: redondos, engraçados, sempre com cara de quem quer entender algo incompreensível.
E eu nunca soube explicar porque eu também acho a vida incompreensível.
Assim como acho incompreensível Ofélia ter morrido tão de repente na cadeira de balanço que tanto amava com apenas onze meses de idade.
E sem ninguém para testemunhar.
Quieta como sempre foi.
Às vezes, eu coloco a culpa na fitinha que havia colocado em seu pescoço.
Às vezes, acho que ela engoliu alguma coisa que me escapou.
Mas, às vezes, e só muito às vezes, eu me permito um descanso e não me culpo pela morte da Pretinha. O veterinário uma vez suspeitou que a gata fosse cardíaca. Então, de tempos em tempos, me libero da voz que me diz que eu não soube cuidar da bichinha e que se ela tivesse sido adotada por outra pessoa mais atenta, ainda estaria viva roubando “perfexes” e subindo em máquinas de lavar por aí. E aí, me conformo que coração é coisa séria e que eu não poderia ter feito absolutamente nada. E que Ofélia teria morrido dormindo, sem nem perceber que foi, sonhando com os fios de ferro de passar roupa e com as caixas de papelão que nunca faltaram na casa da promotora de livros que recebia cerca de cinquenta livros por mês.
Eu não acredito num céu de gatos, mas às vezes, me permito acreditar.
E quando isso ocorre, esse céu é cheio de pés lavando louça, tapetes onde ela se enrola e brinca, e cadeiras de balanço que servem apenas para dormir e não para morrer.
Eternizaram Ofélia num pingente e me deram.
(À minha pretinha,
a gata que, por algum motivo, me foi a mais querida da vida).
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Deborah Finotti (Rio de Janeiro, 1994) se refugia nos livros desde que se entende por gente. Formada em Letras, atualmente trabalha na área educacional da editora Harper Collins. Católica, caçula de seis irmãos, tem duas gatas e aprendeu a aliviar algumas aflições cantando e escrevendo. Mezzo-soprano, participa de corais da igreja ao curso de inglês. Gostaria de passar a vida viajando e conhecendo novas paisagens.
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