Antes da quarentena já dizíamos. Ninguém mais se vê. E agora, como pensar esse reencontro? Voltar para o que já era ausência?
Há tempos, esse modo de vida alheio a encontros. Diferente do estar só, esse eu com quem vivo em sua marca plural que não é desconectada do mundo. Estar só também como parte do que é humano. Hannah Arendt escreve que – antes de estar com o outro – você está com você mesmo. Será que, onde se perde o contato com o outro, você perde esse eu que te acompanha também?
E agora nos acompanha outra coisa mais.
O medo.
Ainda assim, no escuro se escreve. Para que não sejamos invisíveis, e para que a memória venha à luz. Na arte, vários nomes que se perdem. E saudamos nossos mortos para que reste chão e memória para habitar. E há os que se perdem em números fixados nos dados e estatísticas. No silêncio de um dia, fagulhas de intensa chama. E cada nome camuflado em número grita uma ausência.
Escrever também é inaugurar um tempo de escuta, trazer a palavra para onde não haveria nada. Demorar-se diante de algo.
No entanto, mais do que nunca, podemos nos perguntar: como é falar de onde você não está? Falar por pedaços, telas, fragmentos. E a escrita não como resposta, mas para manter viva a pergunta e a vontade de se rebelar contra o apagamento do corpo, da voz, da pele, em sua celebração do abraço, do toque, da conversa que nasce em presença, no olho, no gesto. A arte do encontro, como é no teatro, de onde saímos transformados e, desse encontro, restam as lembranças. A apresentação, a cada noite única, nos faz lembrar. Ora, na escrita esbarramos em algo que não se deixa apreender. E isso nos constitui em sujeitos com fendas, aberturas, capazes de realizar o diálogo com esse eu no estar só, esse estar só necessário para todas as formas de pensar, e aqui volto a Hannah Arendt.
A arte relegada a último plano pode ser um modo de anestesia e interrupção, de abolir a consciência, negar o direito à literatura, o direito à arte, uma forma de impedir aberturas, fendas, onde o sujeito possa nascer.
Pensar a situação do trabalhador das artes e da cultura no Brasil, o artista privado do trabalho que ocupava os teatros, as praças, as ruas. O escritor, o ator, o professor sem emprego, o pesquisador sem bolsa de fomento à pesquisa. Ninguém sabe o que virá e de que forma poderemos viver. E, ainda assim, se escreve com a palavra e o corpo, se não te falta abrigo por enquanto. Ainda assim, escrevemos e tentamos manter viva a arte e a luta para que possamos ser cidadãos um dia, ter uma vida em que você possa se sentir fazendo parte. Na esperança, se inscreve a palavra dor; mas, enquanto podemos, seguimos. Mesmo partidos em quadrados, tela de computador ainda de tubo sem câmera, quando apareço só voz no recorte escuro ou nos dez minutos em que o celular aguenta.
O celular capta a imagem que não é jogada para a tela porque a imagem jogada para a tela é a que tem a voz. E a voz fala do quadrado escuro.
Para que não estejamos no escuro, escrevo. Na escrita, o caminho, a memória dos espaços, nomes, afetos. Na vontade do encontro, a criação, o estar só na descoberta do tempo. E me pergunto sobre as várias formas de uma cidade digital ficar partida, num lugar tão desigual como o Rio, o risco de uma voz não atravessar em rede a cidade. E deixar suas marcas, interações, num espaço que é seu.
E agradeço à Macabéa Edições por este lugar de troca tão importante – e a oportunidade de convidar autoras do grupo de estudos de criação literária que oriento.
_
Sem relógio
Relógio de pulso
não dá certo
em tempos de quarentena.
Não dá certo
para lavar as mãos
do polegar ao mindinho
das pontas dos dedos aos pulsos
as palmas o dorso.
Como crianças aprendemos
molhando sem medo
a pulseira do relógio.
Em tempos de quarentena
tomamos sol à janela
andamos do quarto à cozinha
da cozinha ao quarto
lavando as mãos lavando as mãos lavando as mãos.
As velhas mãos
agora aprenderam
sem relógio
com medo.
Lucia Fonseca
*
chiaro oscuro
a maçã não está
no escuro
eu ainda a vejo
estranho estar na luz
como a maçã e
ninguém me ver
amigos família estranhos escutam
a minha voz
ninguém vê
meu corpo
a voz está onde o corpo não está
a luz parece incidir sobre a voz
em quarentena o corpo está
no escuro
Patrícia Tesch
*
Ainda não sei
quanto mede metro e meio
de distância
quanto mede a saudade
de braços
entrelaçados em nossas costas
quanto mede o toque
nos seus cabelos
e o tremor
com sua voz em meus ouvidos
quanto mede
mês e tanto longe de casa
e a vista para o prédio
ao lado
quanto mede a discussão
do almoço de domingo
molho vermelho
ou branco
feijão com caldo
ou farinha
no tutu à mineira
quanto mede aquela vida
agora outra
e a distância de sua voz
em minha tela
quanto mede esse amor
sereno e inesperado
que nasce
solidário
na distância
imposta
pela quarentena
S. G. de Paula
*
e agora
na tela
dois traços azuis
no lugar de olhos
pulso, conversa
ritmo
eu posso ver algum dia você?
ouvi a pergunta do menino para a avó
na tela
então ele não achava que a tinha visto
ele não achava que aquilo era ver
eu posso ver algum dia você
essa pergunta muito simples
apesar das trocas no whatsapp
não sabia ainda
que a leria
de forma trágica
alguns meses depois
nesses tempos de agora
eu posso ver algum dia você
nesses tempos
em que não se sabe quando
se volta a ver gente
bem antes
me fiz a pergunta
onde se vê gente hoje em dia
e na minha lista de respostas escrevi
no teatro
na cena, na oficina
na aula
quando você estuda
olha as pessoas
e sabe
conhecer pelas mãos
pelos pés
é como conhecemos o mundo
você conhece as suas costas?
pergunta a esther na oficina
de movimento e composição
que cor tem as suas mãos
qual o seu abraço mais demorado
espero que possamos nos lembrar
o quanto de você há no abraço
o quanto de você é entrega
não nos esqueçamos
disso
quando de novo na rua
sobrevivermos à casa
voltemos ao telefone
à voz
e ao encontro fora da tela
tenho sonhado
com espaços grandes, desertos
onde de repente encontro gente
salas de teatro em prédios antigos
subo as escadas e me perco por salas vazias
as portas não aparecem mais
no entanto
uma delas está ali
e basta acertar o andar a direção
o ímpeto
e eu penso em você
de quem alguém já ficou
a um metro de distância
por ser o outro
o outro de quem alguém tem medo
e no entanto o medo pode ser
de algo muito próximo
eu sou um
outro
a quantos metros de distância posso ficar
para apagar
limpar
qualquer vestígio
do outro em mim
depois que tudo isso passar
você escolhe
se vai manter a conversa
ou a distância
Susana Fuentes
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Susana Fuentes escreveu Luzia, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e Escola de gigantes, contos, selecionado no programa “Rio, uma cidade de leitores” na Biblioteca do Professor da SME (RJ). Escreveu a peça teatral Prelúdios, em quatro caixas de lembranças e uma canção de amor desfeito. Participou de diversas antologias de contos. É doutora em Literatura Comparada pela UERJ.
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