Quebrando a quarta parede
Ficar em casa, hoje, é um compromisso ético; não necessariamente estético, mas absolutamente político. Diante desse compromisso, algumas constatações: nem todos podem ficar em casa, nem todos desejam ficar em casa ou, ainda, nem todos têm uma casa onde possam se abrigar.
Certas constatações são difíceis de engolir, processar, digerir. Às vezes, não querer ver é um caminho; caminho este que quem escreve não costuma seguir. Escrever exige o risco, pede coragem e, por mais que encante, dói. Dói expor os dedos às farpas de um mundo caduco, dói expressar em palavras o retrato demasiado humano do medo da morte e da solidão.
Entre quatro paredes esse medo fica visível, próximo, mais evidente. Assim como fica mais tênue o limiar entre a sanidade e a loucura. Como é fina essa membrana, e eu me repito: escrever exige o risco. Entre quatro paredes, então, arriscamos. Riscamos palavras repletas de som, de fúria. Riscamos, com ou sem rima, os versos capazes de atravessar, furar, romper, quebrar essa quarta parede e destruir os muros concretos ou invisíveis que – já bem antes da pandemia – tentam nos aprisionar.
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Os vazios
vazia a cidade grande de wuhan, vazia a praça de são pedro, a fontana di trevi, a times square, o louvre
vazia a paulista, a praça da república, o túnel, o corcovado, o maracanã, o mineirão, o palácio das artes
vazia a casa da vó, o salão, o banco da praça, o bailão sertanejo, a festa
vazia a reunião, a assembleia de deus , o trem , o avião
os tetos de todas as casas do mundo abrigam o susto do mundo
ainda assim há canto de vozes comuns
e o vazio se enche de bravura.
Daniella Guimarães
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um gigante voador que pela porta da cozinha entre absurdamente lindo elegantemente estranho
roube barulho cheiro peso a visão presença rotina
avance sobre os cômodos da casa quebre louças rasgue papéis
tudo inútil
e me leve sem demora o tédio a fome destas horas
e um peixe morto preso na garganta
| ausência é isto |
Danuza Lima
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o que eu tinha era mundo. o que eu tinha era continente. o que eu tinha era país. o que eu tinha era estado o que eu tinha era cidade. o que eu tinha era bairro. o que eu tinha era rua. o que tinha era casa. o que eu tinha era quatro paredes. o que eu tinha era círculo. o que eu tinha era corpo. o que eu tinha era nome.
por favor, diga meu nome.
o que eu tenho é meu nome. o que eu tenho é meu corpo. o que eu tenho é círculo. o que eu tenho é quatro paredes. o que eu tenho é casa. o que eu tenho é rua. o que eu tenho é bairro. o que eu tenho é cidade. o que eu tenho é estado. o que eu tenho é país. o que eu tenho é continente. o que eu tenho é meu mundo.
Lubi Prates
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2 amantes sentados cada um numa ponta de banco de praça guardavam a distância segura de 1 metro recomendada em tempos de epidemia. sobre eles um céu azulíssimo com flocos de nuvens brancas. decidiram contar em voz alta as nuvens do céu como se contassem os carneirinhos de infância que os fazia dormir. lentamente contavam: 1 2 3 ... contagiados de amor.
Rosane Preciosa
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De joelhos num campo aberto Ouço o tiro da largada Mas não sei de onde veio o estouro Nem em que direção fica a faixa de chegada
Outro tiro escolho a rota do vento Mas era o sopro da minha irmãzinha nas velas coloridas no seu bolo de aniversário Mais um ano se passou e ainda não tive tempo pra contar pra ela as histórias daquelas mulheres que já corriam antes de nós.
Outro tiro Faço uni duni tê E vou voando para o horizonte
Como um afogado que Confundido pelas marés Nada em direção ao fundo do mar
A largada continua a soar De novo e de novo Tem o som do meu alarme todas as manhãs Mas eu nunca acordo
Tem o som dos casamentos e nascimentos e mortes Mas eu não nasço nem morro e ao que parece também não vou casar
Tem o som do meu professor que diz meu nome na chamada mas eu nunca estou
Tem o som do relógio que bate 3 da manhã e eu nunca estou dormindo quando deveria
Tem o som perfeito das festas as quais persigo para as quais me arrumo mas estou sempre atrasada
Tem o som insuportável do silêncio que arde quando alguém não diz o que queria gritar.
Tem o som estridente da minha própria voz que eu escuto dizendo algo que não é nem verdade.
Tem o som amargo e violento de quando você não responde o que eu queria ouvir
Tem o som alto e denunciante das bombas que eu leio sobre no jornal caindo nos lugares onde eu nunca chego pra ajudar
Tudo parece um sinal para correr e tudo parece motivo e tudo parece estrada mas nada vem como orientação
De tanto rodopiar enlouquecida caí de tonta e permaneço parada no mesmo lugar.
Sofia Mandelert
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eu queria conseguir escrever alguma coisa sobre os urubus sobrevoando os prédios no Equador por causa do cheiro dos corpos assim como os cardumes de tubarões que começaram a seguir os navios negreiros pela quantidade de corpos que eram jogados no mar
Vê Barbosa
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Vê Barbosa é escritora e atriz. Formada em Psicologia e Letras e pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional, atua no Teatro desenvolvendo espetáculos, performances e pesquisas sobre a Palavra e a Cena Contemporânea. Busca, numa perspectiva transdisciplinar, cruzamentos e composições entre linhas filosóficas e linguagens plásticas/poéticas.
E-mail: euapoioteatro@gmail.com
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