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Um livro é uma arma – por Bruna de Paula

Atualizado: 23 de jun. de 2021


Conteúdo publicado originalmente


A ação "Um livro é uma arma" é uma iniciativa da Macabéa Edições para o mês da consciência negra. A cada quinta-feira de novembro, uma blogueira convidada intervém com resenhas e comentários de livros escritos por mulheres negras. A convidada que abre a série é Bruna de Paula, do Empretecendo Narrativas.


Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou


Acredito que, independente de quem você seja, este livro vai tocar no seu eu-profundo, entretanto, para uma mulher negra, ele pode abrir algumas feridas, e, por isso, eu recomendo que ele seja lido com calma e sabedoria. Maya, muito provavelmente, vai estremecer a sua estrutura com uma escrita que, ao mesmo tempo que é terremoto, é afago.


No começo da década de 30, Maya e seu irmão Bailey foram mandados para viver com a avó quando ainda eram bem novinhos: com apenas três e quatro anos de idade eles se viram em um trem que os levaria até Stamps, uma cidade no Sul dos Estados Unidos. Longe de seus pais, em um território geográfico nada receptivo para com pessoas negras, tiveram que se adaptar a uma vida escassa de demonstrações de afeto e carinho, características que, no decorrer da narrativa, compreendemos como uma das tantas consequências que a escravização causou às pessoas pretas.


O livro relata a história de uma Maya ainda criança que se vê sendo forçada a amadurecer e passar por experiências que nenhuma criança deveria passar. Abusada e negligenciada, carrega uma culpa que não a pertence, mas que a acompanha por longos anos. A autobiografia de Maya é muito semelhante a de outras mulheres negras, ela evidencia como os corpos negros que expressam feminilidade não eram – e não são vistos como um corpo-afeto, merecedor de carinho e cuidado, mas sim, ao ser enxergado com lentes colonizadoras, se configura em um corpo-objeto, e até em um corpo-propriedade. Ela pontua que até mesmo os homens negros reproduzem as lógicas patriarcais, e o quanto é importante denunciar o sexismo que existe dentro da comunidade negra.


A literatura e os estudos se configuraram como um grande refúgio para Maya, é importante ver como depois de tudo o que ela viveu ainda conseguiu transformar sua dor em arte e em uma voz coletiva para tantas outras como ela. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola é uma narrativa atemporal: a segregação, o racismo, o sexismo ainda fazem parte da sociedade. As consequências da escravidão ainda são palpáveis e presentes na vida da comunidade negra, assim como a literatura e a educação ainda são um meio de emancipação para o nosso povo. E a vida de Maya, por mais subjetiva que tenha sido, vai ao encontro da realidade de muitas mulheres negras.


Maya Angelou é amplamente conhecida por seus profundos poemas e por ser uma grande ativista pelos direitos civis nos EUA, mas também foi atriz, cantora, bailarina e tantos outros adjetivos. Mulher negra e norte-americana, Maya encontrou na escrita a possibilidade de contar a sua história para mundo e dividir seus traumas com ouvintes atentos, os leitores.











Esperança para voar, de Rutendo Tavengerwei


Esperança para voar faz jus ao nome que lhe foi dado: em todos os momentos que a palavra "esperança" aparecia nas páginas o meu peito ficava quentinho. Depois de ler tantos livros fortes e pesados e, também, de viver no mundo como ele se configura hoje (fruto da eleição de 2018 no Brasil), Esperança para voar foi um descanso prazeroso. Rutendo encontrou o tom certo para falar sobre a dor, a perda e o medo, nos fazendo enxergar que nem tudo está perdido. Ela nos dá coragem para explorar sentimentos pouco prazerosos porque "só a esperança nos dá força para voar e escapar da tempestade".

No livro, Shamiso é uma adolescente que acaba de passar por uma perda imensurável e sua vida muda de uma hora para outra. Ela se vê em outro país, longe de suas amigas e daquilo que considerava um lar, e assim podemos imaginar o quanto é difícil abandonar os nossos lugares seguros na adolescência. O Zimbábue agora é (ou deveria ser) sua nova casa e Oakwood a nova escola e o local em que faria novos amigos. Entretanto, tudo o que se relaciona com a construção de um recomeço é afastado por Shamiso.

Recomeçar, finalizar e deixar partir são coisas que nos atormentam até mesmo na vida adulta. E, Shamiso, em idade tão tenra, se encontra nesse lugar em que é preciso deixar o antigo ir e dar espaço para o novo, ao vivenciar a adolescência ela se vê confrontada pela finitude dos laços e pelo gostinho amargo do amadurecimento.


Tanyaradzwa, que divide o protagonismo com a outra personagem, também está, a seu modo, tentando compreender o que partir e ir embora representam em sua vida. Diferente de Shamiso, essa estudante de Oakwood se segura na esperança de um amanhã diferente e melhor. E é muito bom para nós, adultos céticos e levemente melancólicos, entendermos que as estruturas podem mudar positivamente e, quem sabe, a gente alcança um lugar bom e bonito.

Além de retratar as vivências adolescentes de uma forma sincera e humilde, Rutendo também construiu um cenário de enorme relevância histórica. Uma vez que o livro foi inspirado na reforma agrária que aconteceu no Zimbábue, conseguimos enxergar as desigualdade sociais e as terríveis consequências da colonização.

Ler livros escritos para o público jovem-adulto é uma experiência e tanto, principalmente a partir de uma perspectiva não-colonizada e não-ocidental. Imagino o tipo de efeito que um livro como esse pode fazer na vida de tantas jovens negras, não só por ser possível encontrar uma representatividade estética, mas também por dialogar sobre adolescência de forma real.




Rutendo Tavengerwei é uma jovem escritora que nasceu e morou no Zimbabué até os seus 18 anos de idade. Seus estudos a levaram para África do Sul e Suíça. Atualmente trabalha na Organização Mundial do Comércio, em Genebra. Em seu romance de estreia, publicado pela Editora Kapulana em 2018, a autora nos entrega tudo o que precisamos em tempos tão sombrios: esperança.







Mulheres difíceis, de Roxane Gay


"Você é uma mulher difícil". Que mulher nunca ouviu isso? Você é uma mulher difícil quando diz "não", você é uma mulher difícil quando expressa sua opinião, você é uma mulher difícil quando não cede, quando não tiram o que querem de você. Você é uma mulher difícil porque tem um temperamento forte, porque é sensível demais, porque sorri demais, porque é muito espontânea, porque fala e respira. Não tem saída, se você for mulher, alguém vai dizer por aí o quanto você é difícil.

Nós acabamos caindo nessa dinâmica e começamos a nos questionar se realmente somos difíceis, ou pior, vamos tentando nos moldar em algo que não seja visto como "difícil". Eventualmente, descobrimos que quando não somos colocadas como difíceis, o rótulo "fácil" é o substituto e a realidade é que, independente da forma como você é, se comporte, se expresse, a sociedade vai ter um rótulo misógino para você.

Mulheres difíceis é uma coletânea de contos que consegue reunir, com enorme potência, as complexidades, angústias, traumas e alegrias de ser mulher. A escrita de Roxane Gay é íntima. Ela alcança e abraça nossos abismos. Nas narrativas retratadas no livro, a autora penetra, ora calma, ora agressiva, em cada camada do que é ser mulher, até deixar quem lê e as próprias personagens numa profunda nudez. Transparente e poeticamente dolorosa, sua escrita retrata diversas possibilidades do ser mulher e que o mundo não oferece gentileza para quem expressa feminilidade.

É possível encontrar significados sociais e políticos da mulheridade, mas as narrativas são densas e vão de encontro com as subjetividades, deixam as representações coletivas para um segundo plano.




Roxane Gay é uma autora estadunidense que escreveu inúmeros artigos e contos, mas se tornou internacionalmente conhecida pelo best-seller Fome - Uma Autobiografia do (meu) corpo, publicado no Brasil pela GloboLivros. É uma mulher negra que se identifica enquanto uma pessoa Queer, é completamente engajada em dar visibilidade para autores racializados, e possui uma forma de escrever muito densa e pessoal.






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Bruna de Paula é formada em Letras/Inglês, atua como redatora e produtora de conteúdo para web. Mulher preta, lésbica e poeta. Na conta do Instagram Empretecendo Narrativas procura evidenciar a produção escrita de pessoas pretas e compartilhar reflexões e sentimentos através de diferentes linguagens.

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