encharco a página
e não parto da folha em branco
é a folha que se parte em outras
porque é uma página feita
de pedaços (escura e com manchas).
desde meu romance luzia busco por uma poética do escurecimento da folha, como tenho chamado essa ética de aproximação, lugar de fronteira onde luzia foi criada. a pele, a cor, escurecimentos. menino ou menina, um corpo que se narra sempre outro, através das perdas que por algum tempo haviam roubado a coragem de crescer e inventar-se gente.
no curso de extensão de criação literária que dei na UERJ, "olhar, experiência e memória", em diálogo com os silêncios, a pergunta: o que na cidade nos fala, nos vê? viver na escrita, na pele.
ana carolina francisco foi minha aluna de criação literária e quando, como estudante de jornalismo, poeta e apaixonada por filme-documentário, organizou o grupo de estudos "o feminino na literatura" (PUC-Rio), estive lá para falar de luzia e da construção do corpo e da voz nos silêncios. levei a poesia de escritoras negro-brasileiras e a partir desse movimento, em oficina com o grupo que ela reuniu, trabalhamos o gesto da escrita e suas vozes.
volto a esse espaço e me dá ânimo, alma, trazer também outras mulheres. hoje a voz de ana está aqui, em corpo e palavra.
susana fuentes
*
Ave Maria toca no rádio
E eu tento
Eu tento te entender, Senhora
Eu tento te encontrar
dentro de mim
O Seu acalento
A Sua morada
Mas aqui está a dor
Eu mostro ela a Você
Eu me ajoelho, Senhora
Como uma amiga me ensinou
Coloco testa no chão
Joelhos dobrados
E assim pertinho do solo
Encostada no berço das cores
Que rasgam silêncio em flores
Eu penso que escutarei ecos Seus
Senhora, tem lugar pra mim aqui?
Espero
Espera cor de nuvem sem sol
E espalha
espalho essa neblina em meu tom de pele
E não sei mais o quanto eu aguento
Ver esse mundo girar
Sem saber
Se existe lugar pra mim
Ave Maria, Maria que é mãe
Como a Senhora se ergueu?
Depois que viu o sangue do seu filho
Fecundar terra
Maria, minha mãe
Como a Senhora ainda não intercedeu aqui?
Como a Senhora aguenta ver
Tanto filho tombar
Mãe, eu te peço
Nos pegue no colo
Porque se não for a senhora
Será esse país que nos colocará pra dormir
Embalando corpo após corpo
Sem a Sua voz para nos ninar
Ana Carolina Francisco
*
I
o peso infinito
sobre os pulmões
pisa a garganta
que se fecha
a frase ecoa
e se espalha
a plenos pulmões
chega tão perto
mesmo
e o instante
volta e não cala
o peso da noite
o seu grito
baixo
perto
preto
anda pela cidade
pelo asfalto
pelas ruas
em cada pele
que respira
tão frágil e exposta
ouço bem
como respira
e dói e rasga
e isso fere
quero respirar diz a tribo
o peso infinito
sobre os pulmões
museus
escolas
marquises
vidas
periféricas
peles
desse país
que se fecha
pisa a garganta
tapa o grito
que se espalha
na pele
a plenos pulmões
chega tão perto
mesmo
quero respirar
diz o museu e dizem luzias e
galdinos
peso infinito
sobre os pulmões
desta terra
que sangra e queima e não
respira
faltam olhos coração ouvidos
há tantos séculos
não veem
não querem ver
e apertam o gatilho
o botão a garganta
e disparam
em filhos de reis e rainhas
memória e vida e orixás
II
faltam olhos coração ouvidos
há tantos séculos
não veem
não querem ver
e apertam o gatilho
o botão a garganta
e disparam
mas o alvo
nas costas
nas mãos
ao longo dos séculos
era só uma peça de moto
na garupa
era só uma furadeira no terraço de casa
era só um guarda-chuva
e eles não viram
que eu era só uma criança mãe
eles não sabem disso
não querem saber
meu corpo é sempre maior do que eu
até quando te chamo mãe
não sabem que eu sou uma criança e
que eu sinto medo
e que eu sinto
não viram o guarda-chuva
não
não viram a casa
não viram a camisa da escola
não viram
nas costas
nas mãos
era só uma peça de moto
era só uma furadeira
um guarda-chuva
era uma criança, mãe
não sabem disso
meu corpo é sempre maior do que eu
meu corpo é sempre um campo de batalha
e eu sinto medo
eu sinto
Susana Fuentes
_
Susana Fuentes é autora de Luzia, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Escola de gigantes, contos, selecionado no programa “Rio, uma cidade de leitores” na Biblioteca do Professor da SME (RJ). Escreveu a peça teatral Prelúdios, em quatro caixas de lembranças e uma canção de amor desfeito, na qual também atua. Participou de diversas antologias de contos e é doutora em Literatura Comparada pela UERJ.
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